Do Kama-Sutra à controversa E.L James, passando por Marquês de Sade, Anaïs Nin ou Catherine Millet, a literatura erótica sempre foi um gênero que não passa incólume no mercado editorial, seja pelas polêmicas que suscita ou por se constituir fenômeno de vendas – como “50 Tons de Cinza” e seus derivados, que catapultaram a autora James ao rol de milionários da indústria dos livros. Fato é que as casas editoriais não se furtam a apostar suas fichas no viés – inclusive no Brasil, onde várias autoras vêm se destacando. Mas afinal, o que caracteriza um livro erótico? Qual seria, hoje, o perfil de público que o consome? Os livros, digamos assim, ‘picantes’ podem ser um incentivo para acender a chama do erotismo entre casais assim como os filmes?
Autora de “Emma e o Sexo”, a pedagoga e educadora carioca Ilana Eléa, que hoje reside na Suécia, entende que sim. “O retorno que tenho recebido dos leitores são reveladores. Parceiras sendo acordadas no meio da noite para um chamego especial, um carinho na libido, grávidas que se masturbaram deliciosamente, fantasias libertas, sexo mais gostoso, curiosidade atiçada. Para mim, o incentivo é o percurso, a trilha que um bom livro erótico oferece e convida: o preparar a alma para a entrega ao deleite, ao auto-prazer, para o encontro com o outro em uma dimensão de liberdade”, avalia.
“Emma e o Sexo” é o título inicial de uma trilogia. Neste primeiro volume, uma jovem antropóloga sueca, especializada em sexualidade, chega ao Rio de Janeiro para realizar uma pesquisa de campo sobre amor, sexo e empoderamento feminino, referente ao mestrado em Antropologia que cursa na Universidade de Estocolmo. Filha de pai brasileiro e mãe sueca, Emma costuma passar férias no Rio desde criança. “Mas, dessa vez, em meio à sua investigação acadêmica, algo inédito lhe sucede – e, inebriada pelos acontecimentos que se desenrolam no romance, entrará em um labirinto de descobertas sobre seus desejos, fantasias e experimentos em torno do próprio corpo”, diz o material da editora, a e-galáxia.
Outra escritora de destaque na cena brasileira, Mari Sales faz uma distinção importante em relação à questão colocada no início da matéria. “Diferentemente dos filmes, os livros são feito de mulheres para mulheres. O foco é na descoberta do prazer feminino, ajudar as leitoras a terem mais confiança no assunto e a perder algumas crenças limitantes”, diz. Uma pontuação que, de certa forma, se conecta à fala de Ilana. Mari complementa: “Os parceiros, com certeza, são beneficiados, porque ambos buscarão aproveitar o momento íntimo, não mais apenas o homem”.
Mari Sales ostenta números que impressionam: mais de 100 milhões de páginas lidas pelo Kindle Unlimited (sistema de aluguel de livros) e 26 títulos que ganharam o selo de best-seller na Amazon. Recentemente, ela lançou o livro 2 da Tríade Moto Clube, “Victor” – o primeiro volume foi “Valentine”, ambos pelo Grupo Editoral Portal. Ela, que procura dar vida a mulheres empoderadas, desta vez coloca o seu foco em uma advogada “porta de cadeia” Rachel Collins, que trabalha com Victor Aranha, presidente do Moto Clube. Aqui, é a seguinte, a apresentação da editora: “Racional, moderna e destemida, a personagem vive o romance tórrido com o protagonista, em um amor proibido entre mundos opostos: advogada e bandido. Neste caso, o clichê da mocinha que faz tudo pelo “boy” é invertido. É ele que larga tudo para viver o grande amor”.
Sem motivos para constrangimentos
Ilana conta que o primeiro contato que teve com a literatura erótica aconteceu há mais de uma década, em um evento da Cátedra Unesco de Leitura. “A escritora Nilza Rezende leu em voz alta trechos do seu livro ‘Bocas de Mel e Fel’, e lembro de assistir boquiaberta à sua coragem em dar voz a cenas libertinas com um microfone em mãos. Durante a sua leitura performática e deliciosa, o público a aplaudia, soltava gritinhos, assobiava”, rememora ela, para quem “a beleza em se levantar o véu, em se nomear o que ainda se experiencia na calada das noites e nas esferas individuais de prazer tem uma força que pode ser colossal, se bem escrita”.
Mesmo porque, enfatiza, “o sexo nos move, intriga, convida (e infelizmente, também traumatiza) e vestido de arte, metáforas e cenas de sexo explícitas nos presenteia com novos simbolismos, abstrações, vivências”, complementa, pontuando que o tempo de falar baixinho e ficar constrangido por estar com um bom livro erótico em mãos pode sim, ser superado.
Ilana tem como autora preferida Anaïs Nin, e relembra que, lendo “Diários de Henry e June”, se viu em enlevo pelo delírio criado pela autora. Resultado: à época da leitura, passou a carregar o livro, como ela mesma conta, para cima e para baixo – e com muito orgulho. No entanto, ela entende que ainda existam aqueles que preferem os audiolivros para passeios em público. “Assim, com fones de ouvido, podem ficar se deliciando com as frases quentes, resguardando as suas inocências, enquanto por dentro, sentem arrepios”, descreve.
Na verdade, Ilana acredita que o sentimento de constrangimento seria mais apropriado ao se falar que está lendo um livro ruim, com qualidade literária estética duvidosa – independentemente do gênero. “Se o livro é bom, bem escrito, é hora de carregá-lo na bolsa, levá-lo para rodas de leitura entre amigos, ler alto ou sussurrado para a parceria, presentear para quem se ama. O erotismo literário não precisa mais ser uma coisa clandestina, maldita, escondida”, preconiza.
Mari Sales, por seu turno, reconhece que, ao mesmo tempo que o tabu sobre o sexo, entre as mulheres, está sendo quebrado, há mulheres que ainda se sentem constrangidas em dizer que estão lendo um livro hot/erótico. “Com os eBooks, a discrição ao ler um livro usando um dispositivo digital, além das comunidades específicas nas redes sociais, criou-se um ambiente seguro para as mulheres lerem, falarem e compartilharem informações sobre o assunto. São histórias de romance entre adultos – e adultos fazem sexo, essa é a grande verdade sobre os livros”.
Motivo pelo qual ela entende que a literatura erótica está cada vez mais popular e menos julgada. “Quanto mais ‘perdermos a vergonha’ de falar sobre o assunto, mais se tornará um assunto comum entre os adultos”.
Por definição
Ilana ressalta que definir literatura erótica não é algo trivial, uma vez que, explica, o erotismo pode ser encontrado em praticamente todos os gêneros, uma cena aqui, outra ali. “Lembro de ter lido, quando jovem, o livro ‘Feliz Ano Velho’, do Marcelo Rubens Paiva – e ter encontrado uma cena erótica de tão forte apelo, que a página ficava marcada, de tanto que eu voltava até ela, lendo em voz baixa, para me tocar, chamando o orgasmo para bem perto: era certeiro, um ritual. Alguém vai definir ‘Feliz Ano Velho’ como um livro erótico? Acredito que não, mas, para mim, aquele trecho foi o mais erótico que li na juventude e era um lugar seguro para voltar quando buscava o delírio. Mas se reconhecemos o sexo, aludido ou explícito, na estrutura da narrativa em sua inteireza, acredito estarmos falando de literatura erótica (para usar as mesmas balizas colocadas por José Paulo Paes)”.
Perfil de leitora
Para Mari, o perfil das leitoras da literatura erótica é o mais diverso. “A grande maioria veio migrado dos livros de banca, aqueles romances que muitas pessoas escondiam que liam. Há leitoras que tem mais tempo para ler e aquelas que estão na correria entre trabalho, casa e amigos. Não há um padrão, apenas que são maiores de 18 anos e são mulheres”.
A pedagoga e educadora Ilana comenta que, recentemente, foi publicada uma matéria escrita pela jornalista Susanna Mattsson na revista sueca “Bis, Biblioteket i fokus”, exatamente sobre esse tema. “A jornalista conta que tanto mulheres que escrevem quanto as que leem sobre sexo foram ao longo dos tempos taxadas de problemáticas. Hoje, se as mulheres incomodam e assustam em suas práticas de escrita e leitura sobre amor e sexo é porque estão tomando as rédeas, o controle, o ponto de vista dos seus próprios desejos – o que é ameaçador para o cansativo, monotemático, repetitivo discurso conservador e moralizante”.
Outras leituras
Perguntada sobre que escritas, além da sua própria, recomendaria, Ilana diz, não sem certo embaraço, que se frustra ao perceber que, mesmo hoje, pessoas que escrevem as narrativas ficcionais flertando com o erotismo comercial (“inclusive mulheres”) pecam pela reprodução de estereótipos, roteiros desgastados pelo muito mais do mesmo. “Esses títulos não me interessam. A literatura pode inspirar tanto pelo que alude, sugere, incita – como pelo que explicitamente descreve.
Como exemplo, cito ‘Madame Bovary’ como o livro de todas as minhas cabeceiras, com as suas alusões, uma luz opaca para explícitos. Lawrence Durell é fascinante, em estilo similar, e ao dizer coisas no Quarteto de Alexandria, Justine, como ‘o amor não é mais do que uma espécie de linguagem da pele, e o sexo pura terminologia’ ou ‘eram apetitosos como um bando de mulheres’ nos presenteia com imagens líricas, bordando sensualidades pela intensidade dos detalhes”.
Para o que diz ser um mergulho notoriamente luxurioso, ela cita a escrita de Anaïs Nin. “Me fala diretamente sobre a ‘glorificação dos instintos’, para usar o termo machadiano, e o explícito aparece como torrente aos sentidos. Adoro. Em poesias, indico as obscenas da Hilda Hilst e ‘O amor natural’, de Carlos Drummond de Andrade, com versos fervendo devassidão”. Ilana compartilha que recentemente descobriu a poesia da poeta amazônica Giselle Ribeiro, docente de Teoria Literária da UFPA. “Estou maravilhada. Rinaldo de Fernandes organizou contos eróticos escritos por escritoras brasileiras no ’50 versões de amor e prazer’. E gosto muito do ‘A casa dos budas ditosos’, de João Ubaldo Ribeiro. Já uma autora que está na minha lista para conhecer é a Márcia Barbieri”. Ilana conta que “A Puta”, da citada autora, tem recebido comentários elogiosos, mas não foi lançado ainda em versão e-book, “Vou ter que esperar até dezembro, quando estarei no Brasil, para comprar e experimentar a sua prosa”.
Por último, mas não menos importante, ela fala que o trabalho de pesquisa sobre a literatura erótica/pornográfica desenvolvido por Eliane Robert Moraes é precioso. “Recomendo todos os seus livros, como bússolas acesas para percursos de leitura nesse gênero”.
Mari não economiza nomes em sua lista: “Cláudia Castro, Julia Fernandes, Agatha Santos, Sineia Rangel, Jéssica Macedo, Lis Santos, Denilia Carneiro, Sue Hecker, Tatiana Amaral, Nana Pauvolih, Kel Costa, Sara Ester, Aline Damasceno, Aretha V Guedes, Zoe X, Ariane Fonseca, Lucy Foster, Márcia Lima, Jo Magrini… Tem muitas outras, essas são apenas algumas”.
Fonte: O Tempo