Em “A Ásia recontada para crianças”, Avani Souza Silva aproxima lendas e história de Goa, Macau e Timor-Leste de forma lúdica
A origem da palavra Macau. O formato da península de Timor-Leste. O surgimento do bicho-da-seda. De forma divertida e leve, Avani Souza Silva escreve sobre essas e outras histórias mitológicas e folclóricas asiáticas em formato de contos infantis em seu novo livro da editora Martin Claret, A Ásia recontada para crianças (2022). Em cada página é possível viajar pelo Oriente e conhecer a cultura de antigas colônias portuguesas no continente asiático: Goa (Índia), Timor-Leste (ilha situada entre a Indonésia e a Austrália) e Macau (China). Avani, mestre e doutora pelo Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, faz um convite para a imersão em diferentes culturas e uma homenagem à língua portuguesa.
Autora de A África recontada para crianças (2020), Avani estuda narrativas da língua portuguesa e observa a cultura de outros países falantes da língua, como Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. No caso de A Ásia recontada para crianças, a escritora pesquisou e fez a seleção de narrativas orais e tradicionais de livros, pesquisas e até de textos recolhidos especificamente por missionários.
Nesta produção, Avani conta que reelaborou as histórias folclóricas e mitos e incluiu outros elementos narrativos, como ritmos, rimas, metáforas, comparações e caracterização de personagens. Com a riqueza da descrição, a autora transformou essas histórias acessíveis para crianças, empregando até um glossário com significados de palavras específicas de cada local no final dos contos. No entanto, ao mesmo tempo, ela mescla com a linguagem popular brasileira. “Por meio da linguagem, o texto embarca nesse universo cultural brasileiro sem tirar a espinha dorsal do conto, com sua história e sua moral”, ressalta Avani.
Os costumes, os modos de se vestir, a gastronomia, o imaginário desses povos são alguns aspectos que o público infantil conhece com a leitura desta obra. A escritora busca trazer a cultura desses locais tão longínquos para as crianças contribuindo até para a leitura nas escolas, incentivando a multidisciplinaridade: geografia, biologia, literatura e história. Além disso, Avani explora alguns valores nos contos, por exemplo, a amizade, o amor à natureza, o respeito aos mais velhos e a importância das preces.
A consideração pelos idosos está presente, por exemplo, no conto O menino e o crocodilo, na parte do Timor-Leste. A história trata de uma amizade entre o menino que salvou o crocodilo que precisava chegar até o rio para sobreviver. Em troca, o animal oferecia passeios no mar ao garoto. O carinho entre os dois permaneceu por anos e o menino até passou a chamar o animal de “avô”, que, através do glossário no fim do conto, aprendemos que para os timorenses a palavra significa pessoa idosa, sem a necessidade de haver um laço familiar. O crocodilo é chamado de beyna’y, que quer dizer avô, em respeito à lenda de que foi ele que deu origem à ilha do Timor. Nesta história, Avani explica que o formato da ilha faz referência à imagem do animal.
Já a temática da importância das preces está evidente no conto A deusa A-Má, na parte de Macau. A narrativa oral conta que uma menina queria atravessar o mar para visitar parentes, porém não havia como pagar algum barqueiro, restavam apenas suas preces para quem a levasse. Depois de muito esforço, um deles ficou comovido e decidiu fazer a viagem com ela. Neste mesmo dia, houve uma grande tempestade e diversos barcos foram engolidos pelas águas, exceto a navegação do barqueiro solidário, devido às preces da moça. Quando os navegadores souberam da história decidiram criar um templo, que deu origem a uma vila ao redor, A-Má-Gau, e começaram a chamá-la de deusa A-Má, a deusa protetora dos marítimos. Com o tempo, os portugueses simplificaram o nome do lugar. Diziam: Macau. Este é o nome que se manteve até os dias de hoje.
Ainda que Goa, Macau e Timor-Leste tenham sido possessões portuguesas por mais de 400 anos, o leitor se depara com o universo particular de cada território, o que promove uma inserção mais profunda nessas diferentes culturas. Avani aponta que é importante mostrar que lugares tão longínquos quanto a China, a Índia e Timor-Leste foram dominações de portugueses, que influenciaram vários elementos culturais desses locais. “Os portugueses não contribuíram só com o idioma, também incluíram sua cultura e seus costumes, como a dança, a gastronomia e a música. É de suma importância entender e estudar essa colonização que está relacionada também com os processos coloniais do Brasil”, destaca a escritora.
Apesar da distância, Avani aproxima elementos culturais de Goa, Timor-Leste e Macau das crianças. “Explico em uma nota, após o conto Tigela mágica, que no bairro tradicional asiático, Liberdade, localizado na cidade de São Paulo, ocorre em fevereiro uma grande festa popular em comemoração ao Ano Novo Chinês. Assim a criança pode entrar em contato com essa cultura de maneira mais acessível.”
Para acrescentar à fantasia das histórias, as ilustrações de Anna Charlie colorem a capa dura e as páginas, além de dialogar com as técnicas orientais do sumi-ê e da aquarela, e dão originalidade ao livro ao propor uma relação pictórica com as histórias contadas, em um resgate cultural representativo da arte desses territórios. São desenhos que sugerem momentos, sensações e paisagens narrativas que se conectam à subjetividade do leitor. Há uma riqueza de detalhes que potencializa a experiência da leitura.
O livro sensibiliza não só as crianças como também os adultos. “Falo que o livro é para crianças de seis a sessenta anos, porque com a literatura é possível voltar a ser criança”, acrescenta Avani. Para ela, o livro alimenta o desejo de ficção, uma outra forma de ver o mundo.
Fonte: Jornal da USP