A literatura como caminho para repensar a saúde

Aproximar estudos da linguagem à medicina pode parecer algo incomum. Mas desde 2011 o Grupo de Estudos em Literatura, Narrativa e Medicina (Genam) da USP, coordenado pela professora Fabiana Buitor Carelli, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e pelo médico Carlos Eduardo Pompilio, do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM), vem promovendo reflexões sobre o papel da linguagem e da narrativa relacionados às questões de saúde e de doença. Durante a pandemia de covid-19, o grupo tem promovido os encontros virtuais Book Club, dedicados à discussão de obras literárias que tratam de doenças, especialmente infectocontagiosas, e acaba de lançar a série de podcasts Ciência Poética, que no episódio inaugural trata da criação do grupo, que surgiu dentro de um hospital.

Trabalhando desde a graduação com a questão da narrativa, a professora Fabiana se viu dentro de um hospital acompanhando sua mãe, que estava internada, e em conversas com o médico que a assistiu, Carlos Pompilio, o Dr. Cadu, como é conhecido no HC, surgiu a ideia de se trabalhar a relação entre medicina e letras. Mas isso não era algo novo. No Reino Unido, no final dos anos 1990, já havia surgido a narrative based medicine, referenciada pela publicação do livro de mesmo título organizado por dois grandes teóricos, Trisha Greenhalgh e Brian Hurwitz, originando uma série de cinco artigos publicados no British Medical Journal (BMJ). Em um deles, Por Que Estudar Narrativa?, eles defendiam, segundo Fabiana, uma visão narrativa da prática médica, questionando até mesmo a verdade empírica da medicina. Havia também estudos na Columbia University, em Nova York, nos Estados Unidos. Em 2006, foi publicado o livro Narrative Medicine: Honoring the Stories of Illness, de Rita Charon, médica e professora da Columbia University, uma das idealizadoras da narrative medicine (ou medicina narrativa).

“É interessante dizer que é uma área nascida nos meios médicos”, comenta Fabiana, acrescentando que Rita Charon é medica, clínica geral de formação, que só depois foi estudar literatura comparada por seu interesse nas narrativas, e Brian Hurwitz, do Centre for the Humanities and Health, King’s College London, tem formação em medicina e foi também pioneiro da narrative medicine e depois das medical humanities. Hurwitz esteve no Brasil, no ano passado, como professor convidado da USP para ministrar a disciplina de pós-graduação Medical Humanities in a Comparative Perspective. “Foi um interesse que não surge das humanidades, e sim dos médicos que começam a perceber limites na sua prática clínica, de não saber como lidar com as questões de linguagem que envolvem essa prática. É daí que surge esse novo campo de estudo”, informa Fabiana.

Porém, há cerca de dez anos, houve uma espécie de ruptura entre as duas correntes de estudo. Segundo Fabiana, foram se distinguindo duas vertentes: enquanto o grupo norte-americano é mais pragmático, buscando instrumentalizar os médicos com esse saber literário de conhecimento de doentes e doenças, o grupo inglês trabalha em uma linha mais humanística, com interdisciplinaridade entre áreas como história e filosofia, que na opinião da professora é mais teoricamente fundamentada, e da qual o Genam se aproxima. Embora, levando em consideração todos os estudos até então formulados, o grupo brasileiro busca, filosófica e metodologicamente, constituir um pensamento original, diz a professora. O desafio é levar esse conhecimento para fora do Brasil. Como informa Fabiana, o grupo está organizando uma coletânea de artigos, que será publicada em inglês, “muito provavelmente no Reino Unido”.

Fonte: Jornal da USP

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