Poucas pessoas sabem que a Libras não é linguagem, mas uma língua, a Língua Brasileira de Sinais, que conta com uma estrutura gramatical própria. Essa língua é praticada pela comunidade surda, na qual a autorrepresentação e a liberdade que ela proporciona aos surdos são o principal direito que os defende perante uma sociedade em que a maioria ouve e marginaliza quem não ouve pelos meios físicos tradicionais.
Esse prólogo é importante para entendermos o assunto mais específico tratado pelo autor do artigo “Eu sou surda, tenho a minha voz: leituras sobre autoria feminina surda”, publicado na Revista Criação & Crítica. Trata-se de um estudo da literatura produzida por mulheres surdas, pondo em pauta uma abordagem de reflexão sobre “os modos de autorrepresentação da diferença surda, colocando em foco a heterogeneidade de tal experiência”.
A produção literária surda nasce de uma reflexão sobre experiências que normalmente não se associam ao corpo feminino, mas está comprovado que esse corpo “foi objeto de violências e silenciamento, um corpo que foi subjugado por relações de saber-poder baseadas em postulados fixados em discursos normativos”.
Essa literatura conta com a proposta inovadora de criação de textos que não seguem teorias e determinados preceitos e regras literárias, transgredindo o pensamento de uniformidade com a introdução de um “discurso da diferença”. O artigo se desenvolveu a partir justamente das narrativas e performances poéticas na língua de sinais, entre outros materiais colhidos pelo autor para a pesquisa. Em outras palavras, um discurso de identidade de autoras femininas surdas que expressam os muitos e vários depoimentos, relatos biográficos, produções artísticas e performances poéticas dessas mulheres, principalmente em slams (competições poéticas normalmente com o vencedor escolhido por uma plateia, uma prática artística muito difundida no Brasil).
O material do qual o autor se valeu para a elaboração do artigo é surpreendente pela riqueza dos gêneros literários aliados pela pluralidade de recursos linguísticos utilizados, “transitando entre a língua portuguesa escrita e a Libras (Língua Brasileira de Sinais)”.
Segundo o artigo, princípios éticos e políticos amparam a autora surda como sujeito do conhecimento que propõe expor em seu discurso, demarcando seu território na literatura. O autor relata que a defesa por uma literatura de autoria feminina pretende conquistar um espaço no mundo literário, em que a mulher seja o sujeito do discurso, “livrando-se da silenciosa posição de objeto”. No caso das autoras surdas, “soltar a voz” é exigir a aceitação da pessoa surda como agente histórico, passível de ser ouvida por qualquer plateia ou lida por qualquer leitor, capaz e determinada a discutir como se originam os caminhos de identidade e cultura surdas. A literatura surda nasce em “um contexto de ressignificação da própria ideia de surdez, fruto do trabalho de intelectuais da área de educação de surdos – e da militância de intelectuais surdos”.
Surdo como sujeito político
Na década de 1990 a surdez foi definida como uma diferença étnico-linguística, em que se reconheceu o surdo como sujeito político a partir de suas especificidades linguísticas, culturais e identitárias. A cultura surda conta com suas expressividades peculiares, sem a interferência de conceitos médico-terapêuticos visando a enquadrar os surdos como pessoas necessitadas de reabilitação. Finalmente, as associações de surdos reivindicaram e conseguiram legitimar o reconhecimento da Libras como língua natural pela Lei Federal 10.436/2002. A Libras é um novo conceito passível de análise linguística nos âmbitos sintático, morfológico, fonológico e pragmático, pois as línguas emergem de forma espontânea de uma comunidade de falantes. Essa lei “oferece à língua de sinais o mesmo estatuto linguístico que qualquer língua oral natural recebe”.
Hoje, no Brasil, artistas surdos se manifestam pela língua de sinais para “dar materialidade a seus discursos poéticos, teatrais e performáticos”. Em São Paulo, além de outras cidades, o Grupo Corpo Sinalizante realiza o projeto sobre Slam do Corpo, “sarau poético” que agrega artistas surdos declamando o mesmo texto em Libras e em língua portuguesa para ouvintes atentos. O objetivo não é a competição, mas uma criação performática que incorpora “em um mesmo texto dois corpos, duas experiências e duas línguas com estruturas distintas”. Finalizando, o autor do artigo enfatiza o “gesto transgressor” das autoras surdas quando se reconhecem como autoras, “posto que não se trata somente de ter voz própria, mas de estabelecer essa voz como meio de expressão, utilizando para tanto um espaço do qual foram, quase sempre, excluídas: a literatura”.
Fonte: Jornal da USP