Estudiosos da literatura nacional acreditam que ela atua como veiculadora de preconceito e desigualdade racial no País, principalmente quanto aos negros. Essa população, segundo os pesquisadores, é tratada com estereótipos negativos ou simplesmente excluída dos textos literários. Como exemplo da exclusão dos negros nesse cenário, citam a primeira geração de escritores românticos do Brasil, trazendo o índio como figura étnica heroica e eliminando a presença negra, também integrante da população.
Estudo com romancistas contemporâneos revela o negro mais como tema do que como voz autoral. O trabalho foi realizado pela Universidade de Brasília (UnB), analisando publicações das principais editoras brasileiras entre 1965 e 2014, e mostrou que os autores brasileiros são homens (70%), brancos (90%) e paulistas ou cariocas (50% do total). Os personagens retratados também são os mais próximos da realidade desses autores: os protagonistas são homens (60%), brancos (80%), heterossexuais (90%). Quando o negro é personagem (6,2% dos romances publicados entre 2004 e 2014), 4,5% deles protagonizaram as histórias e a maioria (obras de 1990 a 2014) desenvolvia ocupação de bandido, empregado doméstico, escravo, profissional do sexo e dona de casa.
Para a estudante de Pedagogia da USP, Lorena Barbosa Ramos, “a literatura brasileira em si já carrega um histórico de
representação negativa das pessoas negras”. Lorena integra a equipe do Projeto de Cultura e Extensão Juventudes Negras, coordenado pelo professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, José Francisco Miguel Henriques Bairrão.
A submissão escravagista marcou profundamente a vida desse povo. Segundo Lorena, a ancestralidade étnica dos africanos trazida para o Brasil foi obrigada a adaptar costumes e expressões culturais para sobreviver, impondo falta de homogeneidade cultural à literatura afro-brasileira em todo o território nacional.
Ao criticar a literatura afro-brasileira, Lorena começa pelos temas das obras, dizendo que “o texto que se diz afro-brasileiro deve trazer histórias e/ou vivências de pessoas negras”. Os autores devem ser negros e atentar para o ponto de vista “que se dá pela visão de mundo colocada a favor das pessoas negras no Brasil”. A linguagem precisa remeter “à população afro-brasileira” e “à formação de um público leitor negro”. Mesmo assim, Lorena afirma que “essas características não precisam necessariamente aparecerem juntas em um texto para que ele seja considerado afro-brasileiro”.
Literatura afro-brasileira nas escolas e livros infantis
A história e cultura afro-brasileira entrou para o currículo oficial da rede de ensino em 2003 pela Lei 10.639. Crianças e adolescentes passam então a estudar a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, segundo a própria lei.
Mesmo com o reconhecimento oficial, autores negros importantes, como Cruz e Sousa e Lima Barreto, continuam sendo estudados nas aulas de literatura da mesma forma. Para Lorena, o ensino deveria tratar esses escritores como afro-brasileiros e explorar mais suas obras. “Marcar o fato de que esses autores são negros abre espaço para que tais obras sejam vistas.”
Lorena cita, como exemplos a explorar a obra póstuma de Lima Barreto, Clara dos Anjos e o poema de Cruz e Souza, O emparedado. Segundo Lorena, essas são obras que mostram relações inter-raciais problematizadas e ressaltam “a negritude desses autores”. A estudante defende a intelectualidade produzida pelas pessoas negras, para não ser “camuflada por máscaras brancas”.
Literatura infantil precisa alcançar leitores negros
A educação infantil recebe a criança, na maior parte das vezes, para o início das relações sociais fora do ambiente familiar e, segundo a bibliotecária Alessandra Alves de Souza, é nesse espaço que começa a fazer conexões, com base no que lê, de acordo com a particularidade de sua experiência de vida. Como ensina Paulo Freire, a “leitura do mundo precede a leitura da palavra”, assim o pequeno leitor, ao chegar na escola, já traz conhecimento, subjetividade e sua identidade em construção para ser enfatizada e enriquecida.
Esse é o motivo da escassez de autores negros na bibliotecas escolares, argumenta a bibliotecária. Como num círculo vicioso, afirma, falta representatividade e perspectiva para as crianças negras se tornarem futuros escritores. E, continua, “quando você lê um livro, você precisa se enxergar nele, na facilidade de você ser o personagem; mas se o personagem é sempre branco, cabelo liso, olhos claros, fica mais difícil para uma pessoa negra poder pensar em estar naquele lugar, o que pode criar uma barreira entre o leitor e a literatura”.
Para resolver a questão, Alessandra acredita na abordagem de livros literários infantis com enredo e ilustrações que valorizam a construção da autoimagem, da cultura negra e da diversidade étnico-racial para a formação desse sujeito.
Divulgação alternativa para autores afro-brasileiros
Grandes editoras vêm abrindo espaço para autores negros. Mas, segundo a estudante de Pedagogia e também integrante do Projeto de Cultura e Extensão Juventudes Negras da FFCLRP, Glória Marcela Alexandre da Silva, são espaços alternativos, grupos, obras coletivas, eventos, feiras e bienais literárias e a internet.
Ainda falta muito, diz Glória, para que os negros predominem entre obras canônicas e clássicas. Mesmo assim, faz questão de citar alguns nomes que vêm auxiliando na luta antirracista e pela democracia, como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, Carolina Maria de Jesus, Maria da Conceição Evaristo de Brito, Lélia Gonzalez, Tio Sam de Oliveira e Abdias Nascimento.
A importância da literatura afro-brasileira
A cultura afro-brasileira é parte constituinte da memória e história do Brasil, com contribuições para o território nacional, e compõe costumes e tradições como a mitologia, o folclore, a língua (falada e escrita), a culinária, a dança, a religião e todo o imaginário cultural do País.
Fonte: Jornal da USP