No dia 17 de fevereiro de 1922, a plateia que aguardava a apresentação do pianista Heitor Villa-Lobos no Theatro Municipal de São Paulo estava, ao mesmo tempo, ansiosa e arisca. Aquela récita seria o encerramento de uma ousadia que durou três dias – 13, 15 e 17 de fevereiro –, mas que entrou na história como se fosse uma semana inteira: a Semana de Arte Moderna. E Villa-Lobos talvez representasse um raro momento de tranquilidade que não necessariamente existiu nos dias anteriores, com uma série de apresentações e exposições que o jornal Correio Paulistano, no dia 29 de janeiro, afirmava ser “a perfeita demonstração do que há em nosso meio em escultura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual” – só faltou combinar com a plateia. E aquela do dia 17 se assustou ao ver o maestro e pianista subir ao palco de fraque – como o espaço vetusto da elite paulistana exigia –, só que com um pé calçando sapato e o outro… de pantufa. O público interpretou aquilo como uma atitude futurista e desrespeitosa e vaiou o artista impiedosamente. Depois, Villa-Lobos explicaria: não havia nada de futurista, moderno ou o que fosse. Nem falta de respeito. O que havia era um prosaico calo inflamado.
Foi há cem anos que o calo de Villa-Lobos chocou e irritou uma plateia que não estava ainda preparada para aquilo chamado de “modernismo” ou de “arte moderna”. E por que um pé com pantufa poderia criar tanto rebuliço? Porque, na esteira dessa cena, tinham ocorrido outros episódios que mais confundiram do que explicaram. O festival organizado por gente do naipe de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Villa-Lobos – Tarsila do Amaral estava na Europa na época – entre as cortinas e paredes bem ornamentadas do Theatro Municipal – um templo das artes clássicas em São Paulo, um pedaço de Paris às margens do Tamanduateí –, inaugurou um outro momento das artes brasileiras. E toda novidade traz, também, um quê de ruptura com o passado. No caso, dos modernistas, com o classicismo, o chamado “passadismo” e o parnasianismo, ainda em voga no eixo Rio-São Paulo – as cidades que realmente importavam cultural, social, política e economicamente naquele Brasil agrário, semianalfabeto e às voltas com as agruras de uma República com pouco mais de 30 anos e os votos de cabresto.
“A semana efetivamente foi o marco simbólico de muitos desdobramentos que se deram a posteriori, até a década de 1950, acerca da possibilidade de se implantar no Brasil uma arte moderna que representasse o desejo de demonstrar que a velha nação rural, oligárquica e escravocrata ficara definitivamente para trás, que era possível ao Brasil comparecer ao ‘concerto das nações cultas’ com uma arte, uma cultura, além de uma ciência atualizada em relação ao que estava ocorrendo no resto do mundo, porém com uma identidade própria. Essa pelo menos foi a intenção primordial”, afirma Luiz Armando Bagolin, professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP) e curador da mostra Era Uma Vez o Moderno, uma parceria da USP com a Fiesp.
“As elites paulistas começam a perceber que precisavam conquistar uma certa hegemonia cultural – que poderia sustentar uma hegemonia política quando, na campanha civilista à Presidência, o candidato apoiado pelos paulistas (Rui Barbosa) foi derrotado pelo militar Hermes da Fonseca. Neste sentido, o evento modernista de 1922 foi apenas mais um dos eventos culturais, entre inúmeras outras iniciativas culturais paulistas que surgiram na esteira desta busca de hegemonia cultural”, explica o professor Elias Thomé Saliba, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP). “O ano de 1922 serviu, portanto, como ponto de partida para a construção de uma certa mitologia paulista, que incluía a busca de um certo nativismo bandeirante, num desbravador vocacionado a liderar e vencer obstáculos e dificuldades. Vira um mito…”, afirma Saliba.