Antes de falar sobre o livro “1Q84”, de Haruki Murakami, preciso contar uma pequena história envolvendo esse livro. Os dois primeiros volumes de “1Q84” saíram por volta, se não me engano, de 2009 para 2010(?). Havia lido de forma voraz os dois primeiros volumes. No entanto, o terceiro volume só foi lançado quase oito meses depois. E por inúmeras razões eu tinha perdido o embalo do romance.
Pois bem, no mês de junho de 2019, tive uma pneumonia daquelas em decorrência de uma mudança de clima que fez a temperatura cair muito aqui Teresópolis, na Serra do Rio de Janeiro. Fiquei de cama e aproveitei e li os três volumes de uma só vez. E foi a melhor pneumonia que já tive, se é que podemos chamar isso de coisa boa. Talvez a lição que fica desse episódio é que mesmo em situações desagradáveis podemos extrair algo de positivo. Desta vez, nove anos depois, li “1Q84” com muito mais sabor. Bem, quanto ao livro, o considero uma obra-prima.
Aqui vai uma sugestão: tente ler “1Q84”, de Haruki Murakami, de uma vez só. São mais de mil páginas, são três livros. Há algo sobre o livro que requer a imersão profunda, o sentido de conexão e desconexão de outro mundo, que apenas um mergulho prolongado permite. Você vai sair dessas páginas com a sensação de ter sido tirado da sua experiência cotidiana para uma paisagem em que a fronteira entre a realidade e a imaginação torna-se irrelevante.
Na verdade, esse é o ponto do “1Q84”, que se passa em um mundo muito parecido com este nosso, mas ligeiramente refinado: menos um universo totalmente alternativo do que uma variante. Este mundo que vivemos é real? O autor vai dizer que sim. A dor que sentimos neste mundo é uma dor real. As mortes causadas neste mundo são mortes reais, O sangue derramado neste mundo é o sangue real. Este mundo não é uma imitação, nem um mundo imaginário, nem um mundo metafísico.
“1Q84” leva as coisas a vários níveis mais profundamente, aspirando a mais densidade, mais profundidade de emoção e, na maior parte, puxando-a para fora. Com “1Q84”, no entanto, Murakami nos mostra uma visão de um novo mundo que não é um pesadelo, a realidade segue seu próprio caminho e não temos escolha senão nos adaptar.
Lançado em três volumes, “1Q84” é um romance distópico, uma homenagem à obra-prima de George Orwell, “1984”. O romance conta a história da menina Aomane e do menino Tengo, que experimentaram um momento perfeito de amor quando crianças em uma sala de aula. Seguiram caminhos diferentes, mas continuaram pensando um no outro e de alguma forma procurando um pelo outro desde então.
A lógica não deu origem à realidade. A realidade veio primeiro, e os princípios da lógica se seguiram. No centro dessa realidade de “1Q84” está a questão do amor, de como encontramos e como o sustentamos, mesmo, apesar das impossibilidades.
Murakami constrói o romance como um par de narrativas interligadas. A primeira, sobre Aomane, uma instrutora de artes marciais que tem sombras pairando em seu passado e no seu presente. A segunda, envolvendo Tengo, um professor de matemática e aspirante a romancista. Ambos se conheceram na escola e uma vez compartilharam um breve momento de conexão, que marcou os dois. E a memória é que mantém essa relação por vinte anos.
O romance começa com Aomane, uma mulher jovem e sexy, presa no trânsito em seu caminho para o trabalho. O ano é 1984. O motorista do táxi é um sujeito estranho, que parece ler a mente das pessoas. No rádio, toca uma Sinfonietta de Janácek. Ela se pergunta por que ela sabe o nome dessa peça em particular. Ela não é fã de música clássica e só reconhece as músicas mais conhecidas. O motorista do táxi chegou a perguntar se Aomame tem negócios urgentes em seu destino, e ela diz que sim.
Ele explica que o engarrafamento está muito ruim e que o táxi ficará preso na via expressa por várias horas. Ela acha estranho que ele esteja lhe dizendo isso, já que ela sabe que ele não está ouvindo o relatório de trânsito no rádio. Quando ela abre a porta do táxi, o motorista misteriosamente diz para que ela não se deixe enganar pelas aparências. Só existe uma realidade.
Quando ela põe o pé no chão fora daquele táxi, e se desloca para a estação, ela nota que a realidade mudou sutilmente, uma mudança que ela percebe porque a polícia está usando uniformes diferentes e carregando armas diferentes.
Quando ela entra em uma estação – quem leu “Alice”, de Lewis Carroll, pode observá-la descendo pela toca do coelho –, descobre um universo que não é o seu. Entra em uma realidade paralela. A partir dali ela percebe um novo mundo à sua frente, um mundo em que existem duas luas no céu todas as noites. Uma é grande e branca, e a outro é uma lua pequena, verde e torta. Ela também percebe que os policiais usam um tipo de arma diferente, mais pesado.
Ela é uma profissional especializada que tem uma missão a cumprir. E qual é a missão? Aomane é uma assassina de aluguel, seu foco é assassinar estupradores e homens que estabelecem relações abusivas com mulheres e crianças.
Aomane trabalha para uma viúva velha e rica que a ensinou como matar homens maus com uma simples agulha (que é inserida de uma tal forma que não deixa nenhum vestígio). A viúva também dedica seu tempo e dinheiro a ajudar mulheres vítimas de abuso, e ela constrói uma casa especial para manter as mulheres longe de seus maridos abusivos.
A viúva mentora de Aomame diz-lhe que abriga em sua casa uma menina chamada Tsubasa. A garota foi horrivelmente estuprada por um homem que era o chefe de uma seita. A viúva diz para Aomame que ela deve matar o líder. Todos os preparativos são feitos para que Aomane cumpra a sua missão com o máximo de precisão.
Aomane vai ao complexo Sakigake como massagista. Ela é uma espécie de loba solitária. O líder da seita estranhamente encontra-se com uma dor insuportável e precisa de algo para aliviá-la. Eles conversam por um tempo, o chefe da seita diz a Aomane que deseja morrer e que ele sabe quem ela é e o que faz para ganhar a vida. Ela mata o líder sem deixar vestígios. Haruki Murakami envia a heroína do livro para se esconder em lugar seguro. Para aguentar esse período de isolamento, ela recebe um apartamento com mantimentos e toda a coleção de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Mas acaba lendo o livro chamado “Crisálida de ar”.
Ela lê e relê o livro “Crisálida de Ar” e ela começa a entender que ela não foi colocada naquele apartamento contra a sua vontade, mas estava destinada a estar lá, aquilo tinha um propósito. Quando ela acaba de ler esse livro, sente algo no seu corpo, um calor estranho. O que será? E qual será esse propósito?
Enquanto isso, Murakami estabelece uma segunda história, alternando aventuras cada vez mais perigosas entre Aomane e Tengo, que vão dialogando, dando o sentido à história e aos personagens.
Tengo é um professor de matemática em uma escola onde ele é muito respeitado e bem-sucedido. Tem conexões com uma editora e uma namorada casada que o visita regularmente para um sexo semanal. Sofre de uma espécie de visão permanente e recorrente de sua infância em que os seios de sua mãe estão sendo sugados por um estranho, um homem que não era o seu pai. Ele passa a maior parte de seu tempo sozinho, mas não infeliz.
Tengo, além de ser professor de matemática, é escritor. Escrever é o que lhe dá mais prazer na vida. Nunca teve nenhum livro publicado, mas trabalha com Komatsu, editor literário de uma revista que promove anualmente um concurso de novos talentos.
Komatsu pede que Tengo reescreva um romance chamado “A Crisálida de Ar”, escrito por Fukaeri, uma garota de apenas 17 anos. O livro tem uma história que o deixa extasiado, mas é muito mal escrito. Komatsu pede que ele faça um ghostwritting. Para isso, ele convence Tengo a reescrever o romance, mantendo-se fiel ao enredo original o máximo possível, mas corrigindo todos os erros estilísticos e gramaticais. Então, Komatsu vai entrar em uma competição literária, e a história é ótima e tem tudo para vencer o prêmio e criar um frenesi na mídia. E não deu outra: “Crisálida de ar” acontece na grande mídia e coloca o livro nas listas dos best-sellers.
Um sucesso editorial. Mas esse sucesso tem um preço desagradável. Tengo e Fukaeri tornam-se cada vez mais íntimos, ela escolhe viver com ele por um tempo. No entanto, eventos estranhos começam a ocorrer. Entre eles, a paisagem cotidiana: duas luas começam a aparecer em seu campo de visão todas as noites. “Crisálida de Ar”, na verdade, não é uma ficção, mas o registro da experiência da autora (Fukaeri), que viveu no interior de um culto religioso. O líder que fundou esse culto é o seu pai, e ambos desencadearam forças físicas e metafísicas, que alimentam a tensão do livro em questão.
A versão de “1984” (Big brother) de Murakami é o Povo Pequenino, que encontramos pela primeira vez rastejando pela boca de uma jovem enquanto ela dorme. Eles têm dois centímetros de altura, mas possuem a capacidade de “se levantar” a dois pés. O Povo Pequenino é oriundo de uma linha do tempo desprovida de moralidade. São essencialmente destituídos de motivação – eles parecem ser a força por trás da seita, mas não sabemos nada de seus objetivos finais, nem, presumivelmente, de seus seguidores. Sempre que o Povo Pequenino aparece, começam a construir uma espécie de crisálida, desenhando linhas do ar, uma sombra desprovida de alma. Seres reais que podem ou não ter uma agenda espiritual, mas no livro funcionam como agentes do caos, esgotam-se como um fio, mas no fim é uma coisa pequena diante de uma visão, e um ato de imaginação, o “deep 1Q84”.
Falar mais sobre a trama me parece contraproducente. Murakami escreve no final do livro, como se estivesse se referindo ao seu próprio processo. Linhas se conectam a outras alterando a relação de causa e efeito. Fico por aqui. “1Q84” é um livro maravilhoso, que merece um lugar de honra na sua estante.
Por Luiz Guilherme de Beaurepaire
Fonte: Bons Livros Para Ler