Na literatura, assim como no cinema e em outras manifestações artísticas, os transtornos mentais de seus personagens – e por vezes, também, dos próprios autores – movimentam enredos e lançam questionamentos aos leitores. Embora produzida sem compromisso com a precisão científica, a ficção consegue avançar em caminhos que se cruzam com o do profissional da saúde mental, apresentando, com frequência, verdadeiras descrições psicológicas.
“A literatura oferece visões muito profundas, consegue descrever coisas do mundo interno às vezes muito melhor do que o psiquiatra”, afirma Táki Athanássios Cordás, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Segundo o médico, todo psiquiatra tem obrigação de ir além dos livros acadêmicos, específicos da área, alimentando uma visão humanística que extrapole a questão técnica.
Esse interesse foi o que levou Cordás a organizar o livro Personagens ou Pacientes? Clássicos da literatura mundial para refletir sobre a natureza humana. Em parceria com Daniel Martins de Barros, que também é médico do IPq, o professor reuniu análises de psiquiatras, psicólogos e outros profissionais envolvidos com a área da saúde mental, que se debruçaram sobre 43 obras de autores como Franz Kafka, Gabriel García Márquez, Graciliano Ramos e Liev Tolstói.
Personagens no divã
Cordás explica que o intuito dos textos não é dar um diagnóstico psiquiátrico dos personagens analisados, mas oferecer uma outra leitura, sob o olhar da medicina, que pode, também, ampliar a compreensão literária da obra. Segundo o médico e coordenador do curso, nenhum livro é uma aula de psiquiatria, mas algumas produções artísticas, principalmente na literatura e no cinema, oferecem possibilidades de discutir a psiquiatria de maneira bastante didática.
Nenhum livro é uma aula de psiquiatria, mas algumas produções artísticas, principalmente na literatura e no cinema, oferecem possibilidades de discutir a psiquiatria de maneira bastante didática.
Uma das obras analisadas em Personagens ou Pacientes e que estará presente também nas discussões do curso é “Um artista da fome”, de Franz Kafka. Escrito por Cordás e pela psicanalista Cybelle Weinberg, o capítulo dá uma breve introdução à vida e obra do autor tcheco, e descreve a história do jejuador profissional que, enjaulado, exibia ao público sua capacidade de ficar sem comer. A leitura que os estudiosos fazem de “Um artista da fome” observa os diversos sinais descritos na obra que revelam um quadro de anorexia nervosa – o próprio Kafka, desconfia-se, sofria de algum transtorno alimentar. Outro texto de Kafka, “A metamorfose”, é objeto de estudo do psiquiatra Saint Clair Bahls.
O clássico “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoiévski, também está presente entre as obras analisadas. Sua narrativa, centrada na angústia do protagonista Raskolnikov após cometer um assassinato, já foi estudada, inclusive, por Freud. No capítulo dedicado ao livro, Cordás e a psicóloga Alicia Weisz Cobelo consideram o romance um verdadeiro ensaio psicológico das personagens.
Segundo Cordás, já está em desenvolvimento o segundo volume do Personagens ou Pacientes. “Alguns dos livros que nós deixamos de lado devem estar presentes no próximo volume, que deve sair em novembro do próximo ano”, conta. Entre eles, “A Última Tentação de Cristo”, do grego, Níkos Kazantzákis, e obras de Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Edgar Allan Poe.
Fonte: Jornal da USP