A antropóloga conseguiu embarcar de volta para o Brasil, depois de uma quarentena iniciada em Nova York. Ou seja, Lilia está confinada desde antes de março. Foi um tempo produtivo, que resultou em A bailarina da morte – A gripe espanhola no Brasil, livro escrito em parceria com a historiadora Heloisa Starling, um trabalho de fôlego que investiga como se deu a chegada e a disseminação da pandemia de 1918 em território brasileiro.
Para traçar o caminho do vírus influenza naquele início de século, as autoras seguiram o navio Demerara, que atracou no Recife numa manhã de setembro de 1918, com alguns tripulantes contaminados. Vinda de Liverpool (Reino Unido), a embarcação seguiu rumo ao sul. Pelo caminho, contaminou as cidades nas quais atracou, incluindo Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, e plantou o vírus no porto pernambucano, de onde ele se espalhou por praticamente todo o Norte e Nordeste.
A bailarina da morte segue o Demerara. Com capítulos divididos por cidades, Lilia e Heloisa contam como a influenza impactou e devastou a vida da população brasileira em um momento em que não havia sequenciamentos genéticos de vírus nem tecnologias vacinais tão desenvolvidas quanto as de hoje. No entanto, as semelhanças com a situação atual parecem saltar da pesquisa de Lilia e Heloisa a cada página. Desinformação, falta de interesse das autoridades, abandono, isolamento social, novos hábitos de higiene e até o uso da hirdoxicloroquina tornam inevitável traçar paralelos entre 1918 e 2020, embora as autoras evitem o exercício para não dar um ar de anacronismo ao livro.
Na narrativa, a intenção é mergulhar o leitor no contexto sociopolítico e sanitário da época ao contar a história de personagens que se destacaram durante a pandemia, mas também de anônimos que viveram a tragédia de ver corpos empilhados nas ruas em decorrência da extrema mortalidade trazida pela influenza. “Foi uma maneira de transformar a crise num propósito, porque o livro tem um claro caráter político, Ao falar de 1918, obrigatoriamente falamos de 2020. Não que as conclusões tenham sido condicionadas pela atualidade, mas o livro guarda um debate evidente nesse momento de obscurantismo”, diz Lilia.
A bailarina da morte nasceu de uma constatação que intrigou as autoras: não havia, no Brasil, um livro sobre a gripe espanhola. “Vi como existia, já na época, no próprio contexto, um imenso silêncio. E falei com Heloisa sobre essa ideia, o que era esse silêncio e por que não escrevíamos. Resolvemos tentar fazer o livro”, conta Lilia. No início do projeto, as pesquisadoras não imaginavam que não poderiam se encontrar, mas o isolamento tornou-se cada vez mais necessário com a evolução epidemiológica do coronavírus e foi preciso um plano B para tocar a pesquisa. Nisso, fontes como jornais e fotografias cumpriram papel simbólico muito importante. “Se não fosse a memória dos jornais de 1918, dificilmente faríamos esse livro. E isso lembra muito o consórcio de imprensa em 2020. E se não fossem os médicos, que passaram a escrever a partir da década de 1950, e as universidades, que, a partir de ensaios e doutorados, redigiram belíssimas peças sobre o que foi a espanhola em diversos estados. Só pudemos escrever graças a eles e aos fotógrafos da época.”
A pandemia de influenza foi curta no Brasil. Começou em setembro de 1918 e, na virada do ano, já era passado. No carnaval de 1919, o vírus parecia ter desistido de circular e a folia seguiu seu curso sem grandes impedimentos. Em 2020, o cenário é outro. Longe da estabilidade, mais próximo de uma guerra de vacinas do que de uma “volta ao normal”, o mundo encontrado pelo coronavírus tem outras particularidades. Mas 1918 ainda é capaz de ensinar e dar lições.
Fonte: Correio Braziliense / Blog Leio de Tudo